Excerto de A Última Vida de Sir David

Para os mais curiosos, aqui vai um excerto (livre de spoilers) do nosso próximo lançamento: A Última Vida de Sir David, de Pedro Galvão. Nele poderemos seguir o mui letrato Sir David a desbravar os segredos de Onyria, aliando o seu conhecimento enciclopédico à astúcia com que observa os locais onde a sua alma de aventureiro o leva.

“(…)
Apesar de todo o conforto, David não escapava a momentos de angústia no que tocava ao seu próprio futuro. Na verdade, quase só enquanto lia e investigava conseguia alhear-se da sua triste condição: um recluso numa ilha esquecida. Nenhuma leitura se revelou mais compensadora do que os volumes do diário de Bergeron, em que se relatavam quase dois séculos de caçadas a dragões pelas mais diversas regiões de Onyria. A escrita rigorosa e desapaixonada, mas sensível a pormenores divertidos, manteve-o tão deslumbrado que por vezes chegou a sacrificar a sesta. Com especial deleite, David descobriu serem falsas algumas das ideias comuns acerca daquele anão lendário. Embora o retratassem habitualmente num combate com um dragão bicéfalo, afinal ele nunca tinha encontrado semelhante monstruosidade, que raiava o absurdo. Tão-pouco tinha vencido os mil dragões que os poetas cantavam. Feitas as contas, chegava-se a um total de duzentas e oitenta e seis criaturas abatidas. Mesmo esta avaliação, aliás, podia pecar por generosidade, já que trinta e duas delas seriam classificadas por alguns especialistas como meras serpentes marinhas.

Bergeron tinha deixado provas abundantes do seu percurso heroico. O farol estava recheado de troféus de caça: cabeças de dragão a espreitar sobre as portas, cadeirões em pele luminosa que ainda jorrava calor, coleções meticulosamente organizadas de escamas, garras e dentes. Também não faltavam armas e mapas, ofertas de reis e outros testemunhos de gratidão. O espaço mais impressionante era o sexto piso, que se estendia por uma galeria escavada no rochedo. Aí, três esqueletos completos de dragões, manifestamente dos Reinos Gélidos, erguiam-se como se nunca tivessem desistido de lutar. Foi enquanto os admirava que David compreendeu que o anão transformara o farol numa memória encenada da sua história de caçador: em sequência ascendente, cada piso exibia fielmente um capítulo distinto dessa história. Mas para quem fez ele tudo isto? Para quê todo este trabalho? Como sempre, a mente rochosa dos anões parecia-lhe impenetrável.

Quis o acaso que, nesse mesmo dia, tivesse tropeçado num livro que lhe mitigou a perplexidade. No Fundo de Onyria, da intrépida princesa Akilah, resultara de uma viagem à extensa região montanhosa que separa os Reinos Gélidos da restante superfície sob domínio humano. Aí, onde orcs e anões travam uma guerra subterrânea sem fim, Akilah permanecera cativa dos primeiros até que os segundos a resgataram — tivera assim a oportunidade única de conviver longamente com ambas as raças. Ao saber disto pelo prefácio, Sir David, também ele cativo, não pôde deixar de se identificar com a sorte da autora. Prosseguiu então a leitura. Muitos dos capítulos versavam sobre geologia, a paixão da princesa. Saltou-os e deteve-se num capítulo peculiarmente intitulado «Das Mentes Extremas». Akilah declarava que orcs e anões, ainda que partilhassem o mesmo espaço vital, estavam de tal modo separados nos traços psicológicos que era como se habitassem mundos incomensuráveis. Depois, discorria fina e longamente sobre este assunto, começando assim:

Cada anão tem um profundo sentimento de si e tenta fazer da sua vida sobretudo uma grande narrativa. Não conheci um único que não escrevesse um diário e não o considerasse o mais precioso dos seus bens. Mas se as vidas dos anões se assemelham a romances imensos, as dos orcs serão pouco mais do que amontoados de frases dispersas. Notei que, apesar de evidenciarem boa memória, tratam as suas próprias recordações como se pertencessem à vida de outrem, de tal forma que lhes parece descabido responder pelo que eles mesmos fizeram nem há uma semana. Se lhes pedirmos para relatar a sua vida, dir-nos–ão como passaram as últimas horas; se fizermos pedido semelhante a um anão, ele ficará ofendido ou tomar-nos-á por loucos, pois precisaria de vários dias para esboçar uma resposta.
Os anões, como se sabe, vivem dez vezes mais do que os orcs. Mas na vida de um anão, esconde-se sempre um único eu, sólido e permanente, ao passo que pela existência de um orc desfilam vários eus fugazes — se assim posso chamar-lhes — que frequentemente se tratam como estranhos, ou mesmo inimigos. Entre as pessoas da raça humana, algumas são quase como anões, outras quase como orcs, e muitas outras ocupam todos os lugares intermédios.

E os gatos? — interrogou-se David. — Quantos eus desfilarão pelas nossas sete vidas?(…)”

A Última Vida de Sir David – Capítulo XII

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