Ensaios Imaginauta – Daqui em diante vamos fazer um esforço para publicar pequenos ensaios/artigos de opinião sobre os mais variados temas dentro da ficção científica e fantasia. A primeira pessoa que convidámos foi a Rafaela Ferraz, para nos falar do papel feminino na literatura de género.
Onde estão as mulheres na ficção especulativa Portuguesa?
Quando Margaret Cavendish publicou, em 1666, “The Blazing World”, uma obra por muitos considerada um exemplo embrionário de literatura de ficção científica, teve o cuidado de a dedicar a todas as “noble and worthy ladies”. Incrivelmente, 352 anos depois, ainda há quem ignore a presença das mulheres nos meandros da ficção especulativa.
É cada vez mais difícil legitimar esta posição: basta olhar para prémios recentes para concluir que o género feminino tem arrebatado muitas das categorias. Nos Hugo Awards 2017, os prémios de melhor novel, novella, novelette e short story foram todos atribuídos a autoras (N. K. Jemisin, Seanan McGuire, Ursula Vernon, e Amal El-Mohtar, respectivamente), assim como o John W. Campbell Award for Best New Writer, cuja vencedora foi Ada Palmer.

Ada Palmer
O panorama é positivo, especialmente considerando que foi apenas o segundo ano (2016 foi o primeiro) em que todas as categorias de ficção foram vencidas por mulheres. Os homens, por outro lado, já estão familiarizados com este tipo de conquista: as primeiras catorze edições dos Hugo Awards produziram apenas vencedores do género masculino. A edição de 1968 trouxe-nos a primeira mulher vencedora (Anne McCaffrey, com a novella “Weyr Search”), mas a edição de 1969 voltou a ser 100% masculina, assim com as edições de 1971, 1972, 1976, 1980, 1986, 1987, 1998, 2002, 2003, 2007, 2010, e 2015 (este último devido, em grande parte, à campanha Sad/Rabid Puppies).
Pouca ou muita, parece que as mulheres até escrevem ficção especulativa.
Mas será que a escrevem em Portugal?
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O meu objectivo, quando comecei este artigo, nunca foi o de gerar estatísticas para poder responder a esta pergunta, mas a vida dá destas voltas e a internet nem sempre tem a informação que procuramos. Por vezes, temos de ser nós a produzi-la, com recurso a um Excel, uma lista de publicações nacionais de contos de ficção especulativa, e muita paciência.
Falemos dessa lista, então. Os critérios que usei para a inclusão de uma publicação foram apenas dois: a) publicar contos de ficção especulativa; b) ter uma lista de autores facilmente acessível. Mesmo assim, só consegui incluir oito publicações, pelo que optei por não explorar outros critérios de potencial interesse, como períodos de actividade e/ou regimes de pagamento (ou falta dele). Esses pontos continuam disponíveis para quem os queira abordar no futuro.
Portanto, compilada a lista de publicações, restou reunir os nomes de todos os autores que já escreveram contos para cada uma, e fazer as contas à vida. Aqui ficam os resultados:
N | Homens | Mulheres | |
Almanaques Steampunk (incluindo Almanaque 2017) | 18 | 61% | 39% |
Revista Bang! | 55 | 76% | 24% |
Divergência (excepto Almanaque 2017) | 23 | 61% | 39% |
Fantasy & Co | 19 | 53% | 47% |
Fénix | 41 | 66% | 34% |
Ficções Phantasticas | 9 | 78% | 22% |
Imaginauta | 18 | 72% | 28% |
Nanozine | 39 | 64% | 36% |
Representação média: | – | 66% | 34% |
Numericamente falando, é claro que os homens dominam todas as publicações estudadas. A publicação com maior representatividade masculina chega aos 78%, mas a publicação com maior representatividade feminina não passou dos 47%. A média total, essa, lá foi definhando nos 34%.
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Não posso explicar estes números. Não posso, com base nesta tabela, tirar grandes ilações sobre o porquê de isto acontecer–mas posso especular.
Comecemos por isolar dois grandes momentos no percurso que um conto percorre desde o primeiro rasgo de inspiração até à publicação: o momento em que o autor submete o conto a uma publicação, e o momento em que essa publicação aceita publicar o conto. Ora, é fácil compreender como estes dois momentos podem influenciar a representatividade feminina num género literário: é possível que as mulheres submetam menos contos, mas também é possível que as publicações aceitem menos contos escritos por mulheres.
Efectivamente, “as mulheres submetem menos histórias” é um argumento comum neste tipo de discussão, e não faltam editores nacionais e internacionais que confirmam esta ideia. Porém, poucos conseguiram expô-la de forma tão objectiva como Julie Crisp, editora da Tor UK, que em Julho de 2017 partilhou o número de submissões que recebera desde o início do ano.
Para um total de 503 submissões, Crisp registou 32% de submissões feitas por mulheres e 68% de submissões feitas por homens, números que em muito se aproximam aos que vimos acima. (Mas como somos pessoas responsáveis, vamos abster-nos de fazer declarações sobre a sua significância estatística.) Por categorias, os números de Crisp tornam-se ainda mais reveladores: os únicos géneros em que as mulheres submeteram mais do que os homens foram urban fantasy/paranormal romance (57%) e YA (68%).
Pessoalmente, questiono a utilidade de incluir YA nesta lista enquanto género, uma vez que este tipo de literatura inclui tanto ficção especulativa como, por exemplo, realismo contemporâneo. Da mesma forma, questiono a desdobragem do fantástico em duas categorias. Há quem defenda a existência de um qualquer abismo entre historical/epic/high-fantasy e urban fantasy/paranormal romance, sim, mas eu não o vejo. (Ou melhor, vejo, mas não é um abismo, é mais um sorting hat que classifica obras com base no sex appeal das suas criaturas sobrenaturais e/ou mitológicas. Se o vampiro for atraente, a obra passa a ser urban fantasy. Feito. Go to “lesser fantasy” jail. Go directly to jail. Do not pass go. Do not collect $200.)
Para todos os efeitos, urban fantasy e paranormal romance são géneros fantásticos–e se tivessem sido considerados em conjunto com historical/epic/high-fantasy, a percentagem de submissões feitas por mulheres teria subido aos 45%.
Mas voltemos a Portugal. Na parte que nos toca, não temos estatísticas deste género relativamente a nenhuma publicação, pelo que a coisa mais próxima que posso trazer à discussão são alguns números relativos às submissões para a 1ª edição do Concurso Nacional de Contos de Ficção Especulativa. Segundo a Imaginauta, que cedeu estes dados, foram recebidos 94 contos, sendo que 64% foram escritos por homens e 36% for mulheres–valores próximos aos apresentados por Julie Crisp, que nos voltam a indicar que os homens submetem praticamente duas vezes mais do que as mulheres.
A ser esta a explicação para a baixa representatividade feminina nas lides especulativas do nosso país, não é difícil chegar a possíveis explicações: talvez as mulheres submetam menos porque têm menos confiança no seu trabalho; porque o mercado actual é pouco apelativo; porque, mesmo sem estas estatísticas, já se vêem subrepresentadas em todas as publicações disponíveis; porque o meio da ficção especulativa nacional se assemelha a um pequeníssimo e praticamente hermético clube de cavalheiros; porque estão conscientes da oposição que a comunidade reserva às suas preferências literárias.
Bronwyn Lovell aborda esta questão no seu ensaio “Science Fiction’s Women Problem”, ao afirmar que o tipo de ficção especulativa que mais atrai as mulheres pode não ser necessariamente o tipo de ficção especulativa que mais agrada aos pesos pesados do género. Esta discrepância pode ser suficiente para convencer potenciais autoras a auto-sabotar os seus esforços: para quê submeter uma história sobre uma princesa adolescente que salva a namorada (também princesa) da torre-prisão, com recurso aos seus dotes de crochet e à espada de um falecido herói, se tantos membros da comunidade continuam orientados para um tipo de ficção especulativa onde as mulheres só existem para decorar o cenário? Nancy Jane Moore apoia esta ideia em “Toward a Better Future”, ao afirmar que uma das melhores formas de apoiar as autoras de ficção especulativa é reconhecer que estas dificilmente vão continuar a escrever as mesmas histórias que se escreviam na Golden Age do género.
Isto coloca, obviamente, alguma pressão nos ombros dos editores, assumindo que estes querem melhorar a representatividade feminina nas suas publicações.
Por um lado, terão de questionar o seu próprio papel em todo este processo. Afinal, são seres humanos com preconceitos e biases, e numa sociedade historicamente machista, estes preconceitos e biases podem resultar numa menor aceitação de contos escritos por mulheres. Por outro, terão de criar estratégias de resposta ao menor número de submissões que recebem por parte das autoras–o que pode implicar não só um redirecionamento das preferências “da casa”, mas também uma nova forma de relacionamento com a comunidade de ficção especulativa em geral.